Em Defesa da Moda

A ex-comunista Miuccia Prada foi absolutamente franca acerca do assunto: Não acredito em pessoas que dizem que roupa não é importante. Perante este quase jacobinismo, e ainda que certos argumentos de autoridade possuam a solidez de uma casca de banana, não resisto a invocar em defesa da signora Prada a arte certeira de Twain: Clothes make the man. Naked people have little or no influence in society.

Pretende o anterior parágrafo introduzir o tema. E o tema é: será a moda um capítulo essencial da ditadura imagética? Para tentar responder, três interrogações prévias en passant. O que é moda? O que é ditadura? O que é imagem?

Segundo a proverbial definição de Jean Cocteau, la mode, c’est ce qui se démode, o que concorda em absoluto com a máxima de Coco Chanel: A moda passa, o estilo permanece. O que é ditadura? Essa parece fácil. Mais coisa menos coisa, resume-se a um quadro de pensamento único (segundo os seus acólitos tendencialmente ad aeternum…) em que alguém manda e eu obedeço. Imagem? Conceito de contornos menos claros, talvez nos baste entendê-la como a representação visual de um objecto ou de uma ideia.

Chegados aqui, estrebucha um pouco o juízo de que a moda serve a ditadura da imagem. Desde logo, porque aquela é na essência efémera e toda e qualquer ditadura anseia por imitar a Toyota: Vem para Ficar (cito um slogan português de 1969 que gozou de considerável sucesso ― a prova é que até eu me lembro dele). Depois, porque as imagens de moda são cada vez mais plurais; fenómeno que tem, aliás, fácil justificação: se há algo que não casa com a moda é o modelo uniforme, que sucede ser o fardamento dilecto dos ditadores das mais variadas tendências. Ou como colateralmente se escreve em História da Beleza, obra colectiva dirigida por Umberto Eco: Os media já não apresentam um ideal único de beleza. Os meios de comunicação tanto propõem a opulência de Mae West como a graça anoréxica das últimas modelos; a beleza negra de Naomi Campbell e a nórdica de Claudia Schiffer; a mulher fatal e a rapariga frágil ao estilo de Julia Roberts. O nosso viajante do futuro já não poderá diferenciar o ideal estético difundido pelos media. Será obrigado a render-se perante a orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo (…). De onde virá, então, a crença generalizada de que a moda é um factor de opressão?
Vou dar um exemplo. A minha tia Raquel, uma leiga em semiótica que intuitivamente sabia como um vestido pode significar muitas coisas, tinha a opinião que se segue: Quem quer ser bonito deixa-se esfolar! Escusado será dizer que cuidava da aparência com apuro hollywoodesco e que, tão-pouco dada às letras, teria subscrito, voluntária, a desafectação confessa de Clarice Lispector: Podia ser outra. Podia ser um homem. Felizmente nasci mulher. E vaidosa. Prefiro que saia um bom retrato meu no jornal do que os elogios. Seriam, tanto a tia Raquel como a conceituada escritora, fashion victims avant la lettre? Porque é nisso, afinal, que todos estão a pensar quando falam de ditadura da imagem relacionando-a com moda.

Claro que «ditadura da imagem» é tecedura provida de muito mais elasticidade. Tanto pode compreender os manuais escolares (polvilhados de «bonecos») como a anorexia nervosa (disfunção alimentar grave que define um quadro neurótico, e cuja origem tem vindo a ser imputada, com alguma ligeireza, aos modelos em passerelle); tanto abarca as entorses televisivas (a virtualidade do meio a substituir-se ao real) como a manipulação publicitária (produtos fetiche causa de (in)satisfação narcísica), como, como…

Afinal, num mundo saturado de signos que vertiginosamente se auto-reproduzem, gerando um efeito de hiper-realidade, talvez seja difícil, senão mesmo impossível, escaparmos às imagens e às suas representações simbólicas (mas, ainda agora, a crise financeira veio provar que uma hipoteca não deixa de ser uma hipoteca só porque alguém a mascara sob títulos nobiliárquicos como «Structured Investment Vehicles»/SIV). Mal comparado: um vestido comprado numa grande superfície não passa a ser Alber Elbaz só por lembrar vagamente um desenho da Lanvin.
Voltando às fashion victim e à tia. No caso dela, pelo seguinte. A todos os partidários de que a actual ditadura imagética engendra mulheres supliciadas por saltos-agulha funâmbulos, pinças contorcionadas, escovas de rímel cerdosas, escalpes faciais sanguíneos ou jejuns sacrificatórios, apenas vos digo isto: haviam de a ter conhecido! Carradas de limão nos olhos para lhes puxar o brilho. Pastos sebosos na cara. Cabelos engomados a quente. Soutiens armadilhados. Depilação nauseante. Cintas asmáticas. Receitas cabalísticas. Mezinhas encriptadas. Alguém falou n’O Jardim dos Suplícios? Octave Mirbeau não alcançaria sequer o primeiro grau maçónico se tivesse de se medir com a geração das mulheres da filha da minha avó!

Aqui há uns anos, o poeta Herberto Helder contava uma história que era assim: parara a carrinha de livros da Gulbenkian num descampado alentejano, quando uma camponesa se acercou da dita e se pôs a folhear os títulos. Depois de muito folhear, requisitou dois: Pode-se Modificar o Homem?, do biólogo francês Jean Rostand, e Estética, de Hegel. Surpreendido com a preferência, e embora correndo o risco de parecer snob, o livreiro motorizado perguntou-lhe o motivo da escolha. A resposta foi simples. Com o primeiro, pretendia aprender a lidar melhor com o seu homem; com o segundo, a pôr-se mais bonita para ele. Que moral podemos tirar daqui? Por um lado, que os signos, como queria Saussure, estão sujeitos à lei da arbitrariedade, por outro, que mesmo no deserto de Mário Lino as mulheres preferem estar bonitas a feias.

E agora pergunto eu. O que mais as favorece? Por exemplo: produtos de beleza La Mer, maquilhagem Shiseido e roupinha Hermès, ou qualquer um dos referidos itens comprados no supermercado? Se este texto não se dirigisse aos dois sexos, seria chegada a altura de interpelar as leitoras: «Minhas amigas, que não nos contem patranhas! A ditadura não é da moda. A ditadura é do dinheiro.» (ou como disse a Dolly Parton: You’d be surprised how much it costs to look this cheap!) Não fora isto, poucos se importariam em tornar-se fashionistas, pelo menos de vez em quando.
O termo fashion victim tem, e com justeza, conotações pejorativas.Terá sido inventado por Oscar de La Renta para definir alguém que, desprovido de estilo e carisma, se rende acriticamente a todas as tendências, sobretudo àquelas que calcula estarem na mó de cima. A marca é tudo e quanto mais cara melhor, poderia resumir o credo das fashion victims. As quais, se quando se olham ao espelho escutam sempre uma voz pronunciando as palavras mágicas ― Em todo o mundo não existe beleza maior! ―, na realidade não deixam de ser o melhor álibi para o sarcasmo de Wilde: A moda é algo tão intoleravelmente feio que tem de ser mudado todos os seis meses.

Mas agora vou confessar-vos uma coisa. É verdade que na série Sexo na Cidade todo o guarda-roupa estava irrepreensivelmente correcto. Mas quem se lembra de Absolutamente Fabulosas!, talvez possa preferir a extravagância demencial de Edwina Monsoon, apesar de, como alguém escreveu, ela parecer por vezes um batido de Elton John com corneto de morango. O que nos conduz até John Galliano, o designer da Dior que em tempos confessou: Simplicity is a such a bore! Sometimes the real fun is in bad taste. O que, por seu turno, nos remete para uma frase de sinal contrário: Gostava de ter inventado as ‘jeans’. Têm carácter, ‘sex appeal’, simplicidade ― tudo o que desejo para as minhas roupas, Yves Saint Laurent.
O parágrafo anterior reconduz-nos ao ponto de partida. Face a tanta diversidade de estilos, atitudes e tendências, será legítimo falar de uma ditadura? Será legítimo insistir em que a moda escraviza as mulheres (e, de acordo com os números de vendas, cada vez mais homens)? Fará sentido continuar a difamar uma indústria que vive de vender beleza (mesmo que a preços obscenos)?Não desenho roupas, desenho sonhos, resumiu Ralph Lauren. E, muito antes dele, disse Jean Cocteau: A arte produz coisas feias que, não raras vezes, se tornam bonitas com o tempo. A moda, ao invés, produz coisas bonitas que, com o tempo, se tornam feias. Falhou apenas Cocteau em dois dados do problema. Primeiro, o apelo estético incólume de algumas peças (basta pensar em Cristóbal Balenciaga…), depois, a capacidade da moda para se reinventar a si própria (já vestimos bocas-de-sino, já abominámos bocas-de-sino, e que eu apanhe já outra constipação se, com diferentes alinhavos, não vamos voltar a usá-las!).
Ao contrário das mulheres do tempo da tia Raquel ― e podem crer que eu não a inventei ―, essas sim, sujeitas ao espartilho da moda (mesmo se o espartilho fora abolido algumas décadas antes, no início do século XX), os consumidores de hoje transitam livremente entre códigos. Para expor a ideia de forma visual, já que uma imagem vale mais de mil palavras (provérbio oriental que até Mao Tsé-tung honrou ao deixar-se fotografar a tomar banho no rio Yang-Tsé em 1966, provando às massas, e aos opositores da Revolução Cultural, que ainda muita água passaria por baixo das pontes até ele abandonar o poder). Que semelhanças se poderão encontrar entre os estilos de Madonna (já em si mesmo plural), Gisele Bündchen, Kate Moss, Agyness Deyn, Jennifer Lopez, Sophia Coppola, Julian Moore, e etc., só para dar uns exemplos? Talvez só a que reverte desta definição da actriz Sophia Loren: O vestido de uma mulher deve ser como uma cerca de arame farpado: serve o propósito mas não tapa a vista.

No actual panorama da moda, tal qual a beleza de que falava Eco, as ofertas são polimórficas e polissémicas. É verdade que não facilitam a vida ao consumidor que, quando pouco seguro, se sentirá perdido: When in doubt wear red, aconselhava Bill Blass, mas já a Ivone Silva subia ao palco e dizia: Com um simples vestido preto eu nunca me comprometo. E a dúvida fica em aberto. Coisa que seria impossível numa ditadura.

Imagem de Cristóbal Balenciaga